Automutilação: a forma dolorosa de falar

Para a psicanálise, o sujeito se constitui enquanto ser de desejo e é mediado pela linguagem. Desejo e palavra humanizam. Logo, a humanidade se apresenta num encontro em que um espera algo do outro. Há pessoas que fogem do encontro com os outros e consigo mesmas, fogem da possibilidade de falar. Há os que necessitam falar e não lhes é dado a palavra. Há ainda, os que não têm como dizer: não encontram palavras. Estes colocam no lugar das palavras uma ação. Atuam, muitas vezes, se mutilando, se cortando.

Etimologicamente, de acordo com o Dicionário Dicmax Michaelis (2007), a palavra mutilação vem do baixo-latim mutilatio que significa “ato de mutilar, de cortar um membro” e ainda “ação de truncar, cortar, abreviar as palavras”. O verbo mutilare, designa “truncar as palavras, diminuir, reduzir, encurtar” ou mutilaloqui, que significa “pronunciar algumas frases truncadas, comer as palavras”.

Se reportarmos às designações em inglês, o termo cutter pode ser traduzido como “cortador”, ou “pessoa que se corta”. Resta interrogar o que o “cortador” corta? Talvez o “cortador” corte a dor. Assim, automutilar-se seria uma tentativa de diminuir a dor, torná-la reduzida, aliviada.

Mas de que dor se trata? Qual dor se alivia com outra dor? É através da psicanálise que este estudo propõe discutir essas questões.

A obtenção do prazer e o afastamento do desprazer orientou por muito tempo a teoria freudiana. Porém, Freud (1924), com o artigo “O problema econômico do masoquismo”, ultrapassa a hipótese de que o princípio do prazer relaciona-se a uma regulação da quantidade da tensão nos seus aumentos e diminuições. Demonstra que há processos que contradizem o princípio do prazer e da realidade que, como hipotetizava, evitariam o desprazer. Aproveita, então, para reafirmar que o inconsciente “é incapaz de fazer qualquer coisa, senão desejar” (Freud, 1900, p.600) e, reafirma, ainda, que o desejo inconsciente pode utilizar de uma força demoníaca para se satisfazer[1], a Pulsão de Morte[2], como será esclarecido a seguir.

A pulsão foi enunciada como “como representante psíquico das excitações oriundas do interior do corpo e chegando ao psiquismo, como uma medida de exigência de trabalho que é imposta ao psíquico em consequência de sua ligação ao corporal” (Freud, 1915). A pulsão possui uma força constante e constrói seus circuitos repetitivos na busca da satisfação, utilizando da fantasia para eleger os seus objetos. É pelo desejo que o corpo torna-se objeto que busca satisfação através dos caminhos da pulsão.

No entanto, a clínica demonstra a presença de um circuito pulsional que não envolve a fantasia ou o desejo com vistas à satisfação, pois o circuito se orienta por pura atividade, pura descarga. Não são os princípios do prazer e da realidade que dirigem essa pulsão, e sim, utilizando um conceito lacaniano, o gozo[3]. A essa pulsão, dá-se o nome de Pulsão de Morte. Ela é governada pelo gozo que não participa do campo simbólico e do campo imaginário. O gozo prescinde da linguagem e apresenta os seus efeitos no real, apresentando-se como a face mortífera da pulsão. Nessa atividade, a pulsão desconsidera o Eu ou o coloca como destino da sua descarga, aniquilando-o. É a atuação que aparece no acting out ou na passagem ao ato.

A automutilação pode ser caracterizada como um ato. A automutilação é a presença do ato como uma forma primitiva de comunicação em que o sujeito marca no corpo, através do sangue, das cicatrizes e da dor a sua incapacidade para verbalizar. O gozo governa o seu viver e a dor não se constitui como uma fonte de desprazer. Neste caso a dor expressa apenas um contorno enviesado da satisfação ao mesmo tempo em que expressa a fuga do real da dor de viver.

Lacan, no Seminário 17 – O avesso da Psicanálise afirma que o gozo é aquilo que excede os limites do princípio do prazer. Cada vez que o sujeito busca no objeto a a satisfação, o que ele encontra é o objeto como perdido, o que desencadeia a angústia. Desde a sua divisão, o sujeito busca uma satisfação, que nunca o completa. Não há formas para que a satisfação realise: nem no sexo, nem no encontro, nem na palavra. Há sempre um hiato, algo que escapa. É nesse momento, então, que a Pulsão de Morte vem subverter o funcionamento do sujeito, apagando-o, tornando-o objeto. No instante do ato, no instante da presença maciça da Pulsão de Morte, não há nem sujeito nem Outro. Há apenas o ato. Não há o que dizer nem a quem dirigir a ação. Nessa vertente do ato, não há referencia a nenhuma representação e não se evidencia nenhum apelo ou demanda ao Outro.

Na clínica é comum observar que os automutiladores apresentam-se socialmente superficiais, com certo distanciamento, naturalmente retraídos e introspectivos e, raramente permitem que outras pessoas compartilhem da sua intimidade. Mostram-se por vezes alegres e descontraídos, mas também instáveis e deprimidos. Eles têm dificuldade de fazer contato através do toque com outras pessoas, seja um toque agressivo ou carinhoso. Na sua maioria, tentam esconder as suas marcas e tem vergonha do seu ato de autoflagelo, o que denota que os cortes não são direcionados a ninguém. Os cortes são simplesmente atos que se repetem compulsivamente, sem explicação. E quanto questionados não tem o que dizer. Apenas atuam, apenas se cortam. Sabem que as pessoas reprovam essa atitude e sentem-se excluídos do grupo dos “normais”. Raramente pedem ajuda.

Retornando ao texto de Freud (1924), vê-se que o masoquismo constitui-se como um fenômeno a serviço do princípio do prazer. Como no inconsciente não há registro representacional de desprazer, a dor passa a ser alvo de descarga de tensão, já que não se considera a qualidade dessa energia. É apenas do prazer que se trata. O desprazer só pode ser sentido no nível do real do corpo, e não do inconsciente. Freud (1924) aponta, em relação ao masoquismo:

Sua periculosidade provém do fato de que ele deriva da pulsão de morte: corresponde àquela cota mesma que escapou de virar-se para fora como pulsão destrutiva. Mas, por outro lado, tem o sentido de um componente erótico: a autodestruição da pessoa não pode também suceder sem a satisfação libidinal. (FREUD, 1924)

O masoquismo é a expressão do desregramento da tensão e aponta a presença da Pulsão de Morte, com sua face obscura do desejo de dor e sofrimento. No masoquismo primário há um prazer da dor como excitação libidinal que se repete incessantemente, tal qual aparece no funcionamento da maioria dos automutiladores.

A pulsão está vinculada à compulsão a repetição. Freud desde o início da sua teorização psicanalítica tratou da repetição sob diversas formas: inicialmente a repetição aparece como uma rememoração em que a paciente preenche as lacunas das suas lembranças com representações que se repetem e causam angústia. Neste caso a repetição é uma reprodução. No caso Dora, Freud (1905) constata que a repetição se presentifica em ato e não em lembranças. Neste caso a repetição é uma atuação. Mais tarde a repetição vai aparecer como uma repetição traumática – compulsão a repetição, que leva Freud a postular o conceito de Pulsão de Morte. A Pulsão de Morte vai desalojar o princípio do prazer como o único princípio regulador do sistema inconsciente, apontando, então a dualidade prazer/desprazer. Nesse sentido, o conceito de repetição relança o inconsciente na sua atemporalidade. Cada repetição atualiza trazendo o novo. Não é uma reprodução nem rememoração. “A repetição é o ato de por e repor o movimento” (MEZAN, 1995).

Ainda sobre o masoquismo, Freud (1924), afirma que o masoquismo primário é a necessidade de punição e é também a base para dois outros masoquismos: o feminino e o moral.

O masoquismo feminino refere-se a posição do sujeito castrado. Nele o sujeito tende a ter fantasias de ser espancado, maltratado, humilhado como formas de obtensão de prazer sexual, equivalentes ao coito.

Já o masoquismo moral refere-se ao repúdio à cura. O sujeito impõe-se ao sofrimento como forma de expiação de culpa. Neste caso, a angústia satisfaz o sentimento inconsciente de culpa do sujeito e se coloca como guardiã da vida. Enquanto existe angústia, o sujeito estará preservado do seu aniquilamento, mesmo que em análise ele desenvolva a reação terapêutica negativa, resistindo ao tratamento.

A automutilação se aplica tanto em um caso como no outro. No primeiro caso haveria a fantasia de, se maltratando, obter prazer sexual e ainda, concomitantemente, seria uma forma de aliviar essa angústia, cortando na pele o que sobra, os excessos. Para a psicanálise a automutilação seria uma maneira de manter-se vivo e não sucumbir à passagem ao ato, ao autoextermínio. Os cortes seriam uma tentativa de introduzir uma falta, uma castração. A automutilação representaria uma dessas formas de gritar, tentativas de se comunicar, de dizer da dor e do sofrimento dessa angústia, apesar da falta de palavras ou da falta de escuta. Se por um lado, faltam palavras, talvez, por outro, haja muita culpa, excessos que devam ser cortados.

A psicanálise sabe que não existe um anteparo suficientemente poderoso para barrar a insistência e a inexorabilidade da Pulsão de Morte. Ela o tempo todo nos ameaça e garante que vencerá a luta contra a Pulsão de Vida. A vulnerabilidade do homem se faz à medida que se sujeita à busca da satisfação. Essa sujeição o lança à angústia por não encontrar a satisfação plena, mas também se sabe que se a encontrar, ele morre. Assim, em pequenos atos o sujeito vai se cortando, se satisfazendo parcialmente, vivendo, gritando, dizendo.

Há de se considerar que o tratamento da automutilação deve ser feito de forma interdisciplinar. É importante o cuidado médico, uma vez que determinados cortes podem exigir intervenção cirúrgica ou medicamentosa, mas também necessita do atendimento psiquiátrico e psicológico. A análise é essencial porque é o espaço em que ele é autorizado a falar das suas dores físicas, emocionais e da sua angústia. É onde ele será acolhido na sua individualidade, na sua subjetividade. Espera-se que através das palavras que inicialmente surgirão cortadas, posteriormente se farão inteiras e quem sabe, poderá advir daí o real alívio para o “corte da dor”.

Referencias bibliográficas:

FREUD, Sigmund. Fragmentos de um caso de histeria. (1905) Rio de Janeiro: Imago, 1976. [Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 7]

FREUD, Sigmund. As pulsões e suas vicissitudes. (1915) Rio de Janeiro: Imago, 1976. [Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19]

FREUD, Sigmund. Uma criança é espancada. (1919) Rio de Janeiro: Imago, 1976. [Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 17]

FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. (1920) Rio de Janeiro: Imago, 1976. [Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 18]

FREUD, Sigmund. As pulsões e suas vicissitudes. (1915) Rio de Janeiro: Imago, 1976. [Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19]

FREUD, Sigmund. O eu e o isso (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1976. [Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19]

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: a angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982

MEZAN, Renato. Figuras da teoria psicanalítica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Escuta, 1995.

MILLER, Jaques-Alain. Percurso de Lacan. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1987

MILLER, J.-A. Introdução à leitura do Seminário da angústia de Jacques Lacan. In: Opção Lacaniana nº 43. São Paulo: Eólia, 7-91, maio de 2005.. SANTOS, Lucia Grossi dos. O conceito de repetição em Freud. São Paulo: Escuta; Belo Horizonte: Fumec, 200


[1] A satisfação, para Freud, é um traço mnêmico de uma vivência prazerosa que será continuamente perseguida. Uma vivência prazerosa não necessariamente seria contrária ao prazer na dor.

[2] Freud (1920) no texto Além do Princípio do Prazer teoriza a Pulsão de Morte, que estaria ligada a aspectos masoquistas do funcionamento psíquico.

[3] Lacan, ao longo do seu ensino apresenta formalizações diferentes para o gozo. Neste artigo, específico, o gozo será tomado como “gozo do Outro”, que se encontra articulado ao sujeito barrado que busca no Outro a forma de gozar, mas neste caso, o gozo do Outro está fora do simbólico, já que a linguagem barra a possibilidade plena de gozar. Dessa forma, o gozo corporifica-se em sintoma, transcrevendo marcas no corpo, seja na psicossomática, seja nos atos infringidos ao real do corpo.

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