A música como instrumento de interação

“Já se deram conta, que a música faz livre o espírito? Dá asas ao pensamento? Que alguém se torna mais filósofo, quanto mais se torna músico?”

Nietzsche

É sabido que aspectos estruturais da música – som, ritmo, melodia, harmonia, timbre, dissonância, silêncio, e também os gestos, entre outros –, se organizam numa linguagem simbólica que podem provocar sensações e expressões subjetivas nas pessoas. A arte tem um significado subjetivo para cada indivíduo que a experimenta. Conceituar a arte é algo complexo, mas o que há de comum em muitas das ideias que partem de especialistas ou leigos, é que arte tem uma significação afetiva.

A palavra música, tem origem do grego e se define como μουσική τέχνη – musiké téchne -, a arte das musas. A música constitui-se, estruturalmente, de uma sucessão de sons e silêncios organizados ao longo do tempo e espaço, constituindo um complexo de interpretantes. É considerada por diversos autores como uma manifestação cultural e humana. Embora nem sempre seja feita com um objetivo artístico, a música é considerada por muitas sociedades como um elemento importante dentro das representações culturais.

Apesar da música ser intuitivamente conhecida por todos, seu entendimento completo é algo relativamente complexo. Encontrar um significado que abarque todos os sentidos da sua prática é um desafio. Segundo Blasco (1999), o valor da música está no fato dela causar no ser humano efeitos no campo biológico, fisiológico, psicológico, intelectual, social e espiritual; e é por estes efeitos que o indivíduo buscará significar a música.

Um dos poucos consensos sobre o conceito de música é que ela consiste em uma combinação de sons e de silêncios ou em sequências sucessivas e simultâneas que se desenvolvem ao longo do tempo. Para Schafer (1991, p. 35) “música é uma organização de sons (ritmo, melodia etc.) com a intenção de ser ouvida. Música é algo que soa. Se não há som, não é música”. Neste contexto incluem-se as variações nas características do som (altura, duração, intensidade e timbre) que podem ocorrer sequencialmente (ritmo e melodia) ou simultaneamente (harmonia). Ritmo, melodia e harmonia são entendidos aqui apenas em seu sentido de organização temporal, pois a música pode conter propositalmente harmonias ruidosas (que contém ruídos ou sons externos ao tradicional) e arritmias (ausência de ritmo formal ou desvios ritmicos). (PULLIG, 2010, p. 22)

Por sua vez, são inúmeros os conceitos que interpretam a música como uma forma de comunicação. La Compôte (1977) avalia a música como uma “linguagem sonora, isto é, a arte de expressar e transmitir os sentimentos vindos da alma, por meio de sons dispostos em séries e combinações de acordo com uma lógica”. Nesse contexto, Hargreaves (2004) considera que a música transcende fronteiras físicas e culturais. Desse modo, é possível, através da música estabelecer comunicação mesmo para pessoas que falam línguas distintas.

De modo análogo, Cunha (2009) considera a música como uma das mais importantes manifestações sociais. A autora postula que a arte musical quando ultrapassa o exercício desencadeador de sentimentos, de descarga emocional e do contágio afetivo, pode fazer parte da vida cotidiana, como um fato que, simbolicamente, se transporta aos sentimentos e emoções do ser. Também Blacking (1981), acredita que “a música é um fato social”. Segundo o autor, a arte não existe em produtos, mas sim em processos, através dos quais, cada pessoa por mais que esteja compondo um grupo, dá um significado específico à sua experiência.

Na tentativa de entender e explicar o que é a música, vários autores a conceituam, ou tentam defini-la, de diferentes formas. Alguns a consideram apenas sob um viés estrutural técnico, outros como uma expressão artística, com o fim em si mesmo; outros, porém, dão-lhe uma dimensão significante/comunicacional.

Para efeito desse trabalho, será abordado o conceito da música como linguagem, atribuindo à música o caráter de uma ferramenta capaz de gerar significante, comunicar e facilitar a interação entre as consciências e seu meio, capaz de provocar sensações, de alterar e reorganizar o meio. Para Craveiro de Sá (2003, p. 131), música são […] forças sonoras que conduzem à formação de imagens, à visualização de cores, cenas, formas, texturas etc. Música que narra, que descreve, que disserta. Música que faz percorrer o tempo numa velocidade inconcebível … música que conduz a um estado de pura virtualidade…música que transporta a outros lugares, a outros tempos…música que conduz a outros estados de humor e de consciência … música que, muitas vezes, organiza e, outras tantas, desorganiza … música que, em alguns momentos, equilibra e, em outros, causa reação totalmente contrária… música-corporalidade, música-tempo … multiplicidades …

A música é uma maneira de sistematização que alia som, silêncio e ruído, numa sequência interativa, dentro do tempo, possibilitando combinações entre sua estrutura e seu meio.

É fato que a música tem um efeito de ‘tocar’ o ser humano de várias formas. Para Montagu (1905, p. 275) tanto a verdade quanto a comunicação começam com um gesto simples: tocar, que é a verdadeira voz da sensação, do sentimento. O toque amoroso, como a música, profere em geral as coisas que não podem ser ditas: nada é preciso que se diga visto que tudo está entendido. As sensações geralmente tem uma qualidade tangível, isso se expressa muitas vezes em nossa linguagem […]

Em várias passagens do seu livro Tocar – o significado humano da pele, este autor relata experiências de culturas distintas em que a presença da música ou sons ritmados causam efeitos sobre os indivíduos e que todas as emoções provêm dos primeiros estímulos sensoriais que o bebê recebe do meio ambiente. Para este autor, as emoções estão associadas aos sons que o bebê ouviu ainda no ventre, como as batidas do coração e/ou a voz da mãe e outros sons que, quando já fora do útero, o bebê ouviu como as conversas, as cantigas de ninar, as músicas. Esses sons podem ter um efeito tranquilizador ou aterrorizador, dependendo dos condicionamentos operados naquela tenra infância. Em um relato sobre as mães esquimós, o autor escreve:

A mãe entoa cantigas para o filho enquanto lhe dá tapinhas carinhosos, abraça-o e o mantém perto do corpo, dentro do parka; com o tempo ele aprende a identificar e a responder à sua voz como substituto para o seu toque. Esta é uma forma de condicionamento reflexo, em que o sinal do estimulo original, a voz, substitui o toque, mas a voz sempre conserva sua qualidade tátil, pois é tranquilizante, carinhosa, reconfortante. Ocupa bem o lugar da presença amorosa da mãe, cujo amor o bebê conheceu inicialmente através do calor e do apoio, da docilidade e da suavidade da pele materna que ele recebeu no atendimento que a mãe dedicou às suas necessidades, de modo tanto ativo quanto passivo, estimulando-lhe a pele, carregando-o, limpando-o e lavando-o. (MONTAGU, 1905, p.290)

É comum as pessoas utilizarem de qualidades táteis para conceituar sensações e experências que vivenciam diante de um som. Assim, dizer que a voz de alguém é macia, aveludada ou é como uma carícia demonstra como os sons são definidos pelas sensações que seriam próprias a outros órgãos sensoriais, no lugar da audição.

Montagu (1905) lembra que Sally Carrighar, em sua autobiografia, conta que, aos seis anos, ouviu um famoso violinista tocar e sua sensação era de que recebia o som não apenas pelos ouvidos, mas também, através da pele de todo o corpo. O mesmo autor também lembra que Edmund Carpenter comenta que, não raro, cantores determinarem a altura do som pela sensação que o mesmo lhe causa. Uma experiência que não seria diferente do rock, em que a pessoa sente a música, geralmente com o corpo todo.

Segundo Langer (2004) os psicólogos Helmholtz e Wundt, consideravam a música como uma sensação prazerosa, ocasionadas por seus arranjos. A mesma autora acrescenta que os pensadores Rousseau, Kierkegaard e Croce, acreditavam na ideia da música como catarse emocional e sua essência seria a auto expressão. Esta mesma ideia também é compartilhada pelos músicos Beethoven, Schumann e Liszt. Para Howard (1984, p.23) “a música é a relação entre os sons e não o próprio som, qualquer que seja o grau de artifício e de complexidade de sua sucessão”.

Para a mesma autora a música é capaz de nomear e acessar os sentimentos, visto que atinge uma comunicação em linguagem não verbal. A autora considera que a música pode ser um mecanismo para “descarregar nossas experiências subjetivas e restaurar nosso equilíbrio emocional” ( LANGER, 1989, p. 217). Ou seja, o sujeito se constitui como uma realidade que compreende um entrelaçamento de múltiplos componentes e que, em contato com a música pode experimentar sensações agradáveis ou não.

Subitamente tudo parece mais suave e mais complexo, o mundo vira uma mistura discernível de múltiplos tons, cores, ritmos, intensidades, reverberações, cadências, qualidades, acontecimentos… O que era Um vira muitos, o que estava subsumido a um Plano único vira um folheado, o que parecia hierarquizado torna-se ramificado, uma pulverização, reagrupamentos, novas dimensões, proliferações… (PELBART, 1993, p. 96).

Aspectos que Sacks (2007) ratifica ao transcrever um trecho de carta de um de seus pacientes, portador da Síndrome de Tourette 8 . Nesta carta, seu paciente comenta os efeitos da música sobre seus tiques, quando em contato com a música, quando narra: “Pode ser tanto uma bênção como uma maldição para os meus tiques. Pode pôr-me em um estado no qual me esqueço completamente da síndrome de Tourette ou provocar um surto de tiques difícil de controlar ou de suportar” (SACKS, 2007, p. 221).

Segundo Piazzetta (2008) alguns estudos filosóficos, antropológicos e neurocientíficos mais recentes, buscam entender o universo da música e sua relação com o homem. Os estudos neste campo abarcam a inter-relação que se processa e sua capacidade perceptiva. Neste contexto, utilizando-se dos conceitos formulados a partir da concepção sistêmica, a música está para além da lógica e da racionalidade e participa de uma estrutura mental que comporta também aspectos do inconsciente, com suas contradições e afetos. Nesse sentido, segundo Cunha (2009), é que Vygotsky afirma que “a verdadeira natureza da arte estaria contida no conflito entre emoções opostas, na contradição que se estabelece entre a forma e o conteúdo da obra que acarretariam na transformação dos sentimentos.” (CUNHA, 2009, p.3)

Assim, a música pode atingir o homem através de dois conjuntos de características: as de caráter estrutural e afetiva (HERRINGTON E CAPELLA, 1996). Aspectos que levam a Joy (1998) a propor que através dos processos interativos e sob uma perspectiva cognitiva, pode-se compreender as relações que se estabelecem entre os indivíduos e o seu meio.

Este texto é parte da monografia de Kelly Elaine de Oliveira e Ludmila Helena de Assis e Freitas Moura, apresentada no curso de graduação em Licenciatura em Música da UEMG em julho/2012, com o título “A música nas interações humanas: estudo teórico aplicado no Hospital Espírita André Luiz, sob orientação do Prof. José Antônio Baeta Zille, tendo Eliana Olímpio como co-orientadora.

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